segunda-feira, junho 18

Invasores


Algumas correntes são mais difíceis de romper do que outras, mesmo quando se tem a ferramenta correta, mesmo quando já se fez isso mil vezes. Odeio quando eles compram correntes de qualidade - às vezes, quase me fazem desistir. Havia silêncio em volta, e o silêncio, quanto mais profundo, mais tensão parece causar. Eu suava. Nenhum vento soprava, de forma que nem mesmo o farfalhar das árvores existia. Tudo no universo, naquele instante, era eu, a corrente e o suor traçando um caminho pouco linear em meu rosto, porém sempre achando a curva aguda do meu queixo e pingando ao chão  - acabaria me dissolvendo em esforços. Então, eu ouvi algo que geralmente não é audível: o barulho estalado e seco de um cigarro queimando. No mílésimo de segundo seguinte, um pequeno ponto de luz avermelhada ao meu lado, denunciando, na escuridão, a presença de meu amigo. Eu quase havia me esquecido que ele estava ali. Foquei no meu trabalho novamente.
- Trouxe os sprays? - ele falou no intervalo de uma tragada, largando fumaça pelo nariz. Não respondi. Deixei que minha arrogância resignada fosse a resposta à pergunta óbvia, enquanto ainda lutava com um alicate nas mãos. Não falamos mais nada, e ele, demonstrando impaciência, se afastou alguns metros para mijar em um canto. Olhava em volta, impaciente, como se a qualquer segundo fosse aparecer alguém. E talvez realmente fosse aparecer alguém. Busquei em mim uma força saída toda do meu desgosto de estar sendo derrotado por um objeto inanimado e, finalmente, com uma onomatopéia abafada e metálica, os elos se romperam ante o poder de minha teimosia.
Rapidamente, em meio a sorrisos de satisfação mútua e dois tapinhas de aprovação que retumbaram em meu ombro, pegamos as mochilas que estavam escoradas no muro e adentramos o pátio do casarão. Não haviam cães, eu sabia. Não havia ninguém. Eu queria aquele lugar há um bom tempo... o suficiente para saber, ao menos, que os donos não apareciam frequentemente. Gente rica e suas casas de veraneio. Mato alto nos cercava, dando evidências para minha teoria, indicando todo o descaso do mundo. Chegamos ao meio do terreno, e parecia que algo me invocava com pressa para o interior. Fitamos a enorme construção branca e descascada e, depois de breve exame, achei a janela de tábuas pregadas que seria nosso portal aos salões do triunfo.
- Pé-de-cabra - falei, esticando a mão sem desviar os olhos, como se fosse um cirurgião compenetrado, e fui logo atendido por meu solícito ajudante. Tábuas com pregos enferrujados não poderiam me deter, não depois daquela maldita corrente ter sido rompida. Comecei a cirurgia.
- Porra, você demorou nessa! Pensei que a gente não ia entrar nunca. O que tinha naquela merda, titânio? - Rio, nervoso e empolgado.
- A gente tá dentro, não? - respondi, ríspido. Ele me olhou, descrente.
- Qualé teu problema, meu? Que é que deu em você hoje, hein? - Arranquei a última tábua e, suspirando profundo, olhei para cima e resolvi me desculpar:
- Olha, cara... foi mal. Eu tô me sentindo tenso, sei lá... Só vamos entrar e fazer essa porcaria logo, tá certo? - nos encaramos longamente, olhos nos olhos, como homens, com os maxilares rijos. Concordamos sem mais palavras.
Ele foi o primeiro a entrar, no escuro total, tateando se medo. Fiz desse ato uma espécie de cortesia banal, enquanto catava na minha mochila a lanterna que havia roubado do meu pai. Um forte cheiro de mofo e solidão se fazia presente. Clic. Luz. Vi refugos de tijolos quebrados, madeiras úmidas esverdeadas e latas de tinta velhas e manchadas, enquanto pulava também a janela. Ouvia, dentro do recinto, o barulho dos entulhos sendo pisados, mas só de relance avistava o vulto de meu companheiro de invasão. Os tijolos e latas, pelo visto, me interessavam mais naquele momento. Fucei, acocorado, em uma pilha de lixo que me chamou atenção.
-Ei... me dá luz aqui... acho que encontrei uma boa - ele falou. Demorei pra responder, ainda hipnotizado por um telefone velho que descobri em meio a tudo aquilo - Ei, seu puto! Me dá essa merda de luz aqui! - gritou mais alto. Alto o bastante para que eu temesse sermos descobertos. Foquei o lugar onde ele estava. Vi seu rosto enrrugado de raiva projetando, em uma grande parede branca atrás dele, uma sombra enorme. Um calafrio estranhíssimo abalou meu corpo.
- É... essa vai servir - respondi, encenando descaso. Ele, novamente empolgado, como se não se lembrasse mais da tensão palpável entre nós, girou nos calcanhares e sacou uma lata de spray da mochila. Em poucos segundos, começou a grafitar. Acompanhei, pegando meus sprays também, afinal, foi pra isso que nós tinhamos vindo.
As explosões de cores substiuiram as explosões de ego, de forma que duas horas depois já estavamos completamente relaxados, jogando conversa fora e finalizando nossas pequenas obras de arte enquanto fumavamos um baseado grande. Ele desenhou um rapper cabeçudo qualquer, enquanto eu me contentei com um coração bastante elaborado, amarelo, com minha assinatura no meio, indecifrável aos leigos. Iriamos ganhar fama por aquela ousadia... as coisas sempre vinham à tona nas cidades pequenas, e a galera toda da rua iria logo saber quem fez aquilo. Conheciam nosso traço, nós éramos bons.
Finalizada a concepção, era hora de ir embora, tão soturnos quanto chegamos. Antes, todavia, era de praxe que fotografássemos o desenho. Me preparei, pegando da pequena bolsa externa da minha mochila uma câmera burguesa. Mirei, pressionei o gatilho de leve, só para ajustar o foco e, um segundo ou dois depois, espalhei pelo ambiente o clarão rápido do poderoso flash.
- Deixa eu ver como ficou, bundão! - exclamou, leve, risonho, meu bom amigo. - Pera aí, caraca... - respondi, também leviano, chapado, tentando me equilibrar depois do soco amigável que levei no braço direito. O botão do menu trouxe aos nossos olhos, conclusivo, o que pensamos que seria a foto de nosso vândalo e rebelde trabalho, mas o que vimos não foi senão uma figura terrível o suficiente para nos arrancar o ar dos pulmões: esguio e flutuante, a boca escancarada de agonia e os olhos vazados de morto, a mão direita erguida em nossa direção - um ente fantasmagórico e desprovido de cor apontava para nós com seus nodosos dedos longos.
- PUTA MERDA! - não sei qual de nós gritou.
 Acho que mijei nas calças. A câmera caiu no chão, disparando outro flash antagônico, e corremos para fora do lugar - tão rápidos e desesperados que sequer lembro onde foi que perdi de vista meu amigo...

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