domingo, março 31

Dois pensamentos sobre eu ser

I

Tenho em mim ímpetos
Poderosos e selvagens
Que dificultam verdadeiramente
A minha convivência,
O meu argumento,
O meu hálito
- O que é isso tudo
Não é tão importante
Quanto tudo o que sou
Simplesmente, pois que sou
Consciente:

Abro a janela do quarto
Que são meus olhos
E miro com competência
A luz do dia ou o mistério
Noturno, pois que sei
Eximiamente bem que é
Toda a paisagem desenhada
Para mim.


II

Há momentos
Extremamente arcanos
Onde o silêncio que paira
No ar como uma pluma inocente
É tão leve e tão frágil que é
Possível perceber todo o cenário
Montado, a atuação das árvores,
O ensaio das nuvens:

A vida
É uma peça
De teatro desenrolada
No palco absurdo da realidade
De haver tempo e espaço dentro
E fora dos deuses, de ser possível
Respirar e supor e dançar
E criar com isso uma arte
Chamada consciência
E, somente então, esbarrar
Na verdade que é profunda,
Pois que diz que o momento
É tudo o que há - e isso
Faz com que todo o medo
De errar morra...

Dois pensamentos saídos do fundo de uma garrafa

I

Não há nada
Como um vinho
Sobre a mesa triste
Da minha sala esquecida
Para acompanhar meus cigarros
Enrolados de solidão e medo.

Não há nada:
O vinho é barato,
O barato é proibido,
A vida é solidão e eu,
Na esperança que o esquecimento
Traz, me escondo e tento furtivamente
Não pensar.

Não penso, sinto.
Não falo, escrevo:
O que restar de mim no mundo
Será beleza impulsiva encharcada
De embriaguez.


II

Ave, uno primordial!
Ave, cosmo, ômega,
Alfa! Ave, deus ou
Seja lá como chamo
A causa motivo de toda
Essa comoção chamada
Realidade: ave!
Ave, que vou me embriagar
Até encontrar novamente
O seio divino e calmo,
Ave, que quero o mundo
No meu colo, ave:

Deixe que eu te encontre,
Deus dos deuses, no fundo
De uma garrafa, na maldade
Solitária de um cigarro,
Na penunbra perdida
Desta noite que imita
A morte. Eu vou me embriagar
Até que me arrebate
A dormência de um sono
Inesperado...

sexta-feira, março 22

Três pensamentos sobre a tua geografia

A. Loise

I

Teu sorriso
Me toma inteiro
Sempre, e me abala,
E me constrange
E me estremece:
Teu sorriso
É um terremoto
E eu sou o templo
E o altar de mármore
Se desmoronando cálidos.

Teu sorriso
É o vulcão
Em erupção
No meio da madrugada,
Eu sou o vilarejo
Adormecido tomado
Pelo calor inabitável
Dos teus lábios incandescentes
De magma.

II

Teus seios
Desbravei com calma,
Como um andarilho
Alegre e despreocupado
Que se deixou à beira dos bosques
A beber sumos e observar
As colinas, e por observar
As colinas sutilmente possuiu
As colinas e toda a vida sublime
Das colinas suaves e mornas
Nas palmas das mãos:

Ah, que saudade!
Eu cheirei a flor tóxica
E perfumadíssima do teu ventre
Como um prado abandonado e belo
E me viciei para a vida
Toda.


III

Oásis,
Se a solidão
Humana é um deserto,
É o teu corpo, abundante,
Repleto de sombras amigas,
E minhas mãos todas são agora
Manadas de animais sedentos
Que são sutis e mansos
E viris:

Oásis é teu corpo,
E eu sou um touro coroado,
Couro negro sob o sol imenso,
Levando à boca aquilo que em ti
Me sacia e me sustenta,
Farejando nos teus pastos vastos
Oportunidades de abundância
E conforto enquanto durar
Essa vida rápida
E salvagem...

terça-feira, março 12

Dois pensamentos que morrem de saudade

                                                                                                                                                      A. Loise


I

A primeira
Vez em que provei
Tua carne com gosto
De ternuras e abraços,
De um olhar certeiro
E um beijo errado,

A primeira vez
Em que provei tua carne
Foi em uma orgia
- E todos abusavam
Sossegadamente
Da gentileza do vinho
E da suavidade do cânhamo
E da libido de outras drogas
E outras paixões:

Até a primeira vez
Em que provei tua carne
Meu corpo não sabia
O vício.


II

Entre
Saldos mal
Calculados
E dívidas amenas
Nesta permuta eterna
Que é as relações humanas,
Não consigo sequer mensurar
O que ganhei e o que perdi
Quando me dei inteiro à suada
E esnobe energia do teu corpo,
Mas não me importo, de forma
Alguma, em investir tudo o que sou
Na contemplação da luz do teu sorriso:

O que lucrei
Quando vi a clareza
Das tuas curvas desnudas
É só meu e não merece
Reembolsos...

quinta-feira, março 7

Dois pensamentos solitários

I

Há um algo estranho, bem faz uns dois ou três
Ou quatro dias, que me vem oprimindo misteriosamente,
Que me vem moendo os ossos aos pouquinhos,
Que me coça e eu nem sei aonde, que me perco
Sem nem sair do meu lugar:

Há algo muito estranho, é verdade, nessa sensação
Estranha de se sentir sozinho, de ser humano e estar nu
Diante dos olhos estrábicos do destino e da vontade,
Na boca morta do épico ou no canto morto do medíocre,
Na previsão da morte que virá, que virá certamente
Certeira, com certeza, que virá para todos nós
Como um tiro dado no escuro, como uma onda imensa
Que arrebata a areia e os castelos esquecidos na orla
- E eu sou uma criança perdida num dia arejado e dourado de sol
Brincando deveras na beira do mar, criando covas nas dunas molhadas,
Enterrando conchas como se fossem lembranças,
Olhando nuvens como quem se separou
Do tudo.


II

Se eu me separei de tudo, do todo, do cosmo ou
Seja lá como quero chamar essa coisa da qual sinto
Saudade e não sei explicar: tenha um nome ou não
Sei que um pedaço de mim não está em mim,
Ou talvez eu seja um caco pequeno
Que sente falta de um corpo maior,
Que se oprime por ser consciente
De tudo isso, de que há tragédia
E comédia e outras sutilezas
Em ser humano

- Que a solidão é verbo,
E toda a vida que nasce
Tem uma irmã gêmea
Chamada morte.

terça-feira, março 5

Dois pensamentos de gratidão

I

Às vezes
Reclamo de barriga
Cheia, como quem nunca
Tivesse provado um momento
De glória e de candura...
Me contradigo... Eu sou o rei
Da contradição: do amor
Mais profundo, em verdade,
Em verdade vos digo
- Já bebi os sumos mais
Doces, já provei a polpa
E me lambuzei o focinho,
Animal de coitos hibernando
Em um quarto como uma toca!

Quem sou eu, afinal, para
Contradizer deuses e destinos?
Rompo as bordas do frenesi
Do meu instinto de bicho:

Eu, homem, humano  - haja o amor
Ou a vida que haja, tudo é pouco,
Sempre quero mais! Abaixo a cabeça
E, pelo faro, procuro o cio do mundo.


II

Pelas horas
De felicidade que
Eu ganhei como uma
Criança que ganha um doce,
Agradeço os beijos
Dados, os abraços concupiscíveis,
Os corpos nos corpos
- Cada corpo individualmente
Muito corpo, corpo eu, corpo
Eterno - os momentos
Compartilhados como canções
Extravagantes e joviais,
Cada sorriso e cada cheiro de pele
Dos quais eu sorvi como
Uma bela flor desértica e sedenta
Sorve a umidade das chuvas breves
De Setembro:

O homem que tenha sido amado
Uma vez ao menos nunca estará
Sozinho.

Dois pensamentos sobre a morte do Verão

I

A morte
Do Verão
É daquelas
Que não sabemos
Se é triste
Ou tardia
- Sabemos
Que a agonia
Do mormaço
Nos prados é,
Enfim, finda:

E toda a chuva
Do final de Fevereiro
É um choro constante
Lavando almas
E refrescando
Os corpos atônitos
À melancolia profunda
Do profundo silêncio
Dos funerais...


II

O carnaval
Já se foi
Com suas cores
- O que resta
Está coberto pelas cinzas
Da Quarta-Feira:

Sumiu meu amor,
Sumiu minha libido,
Sumiu meu estio
E o meu humor
- Toda a luz é nula
Quando se fecham
Os olhos que enxergam,
Quando se fecham
Os olhos do Verão...

E toda essa chuva
É um réquiem
Desafinado e úmido.

18.02.2013

I

Tudo aquilo
Que está aqui
Embelezando
O mundo, toda
A minha poesia: é poesia
Simplesmente, é o eu
Pensando belezas
- E a beleza é a única
Expressão que vale
A pena. É o eu
Pensando, é o eu
Válido, é o eu:

O eu já não se importa
Com a soberba do acerto
Ou a preocupação do erro.
O eu sabe que toda a essência
Das pessoas e das coisas
É opinião, que viver é opinar
Mesmo quando em silêncio:

O eu profundamente experiencio,
E me basta o gigantismo
Deste ato.


II

Pego
Da vida
Aquilo que ela
Quiser me dar
- Flor aberta
Me seduz e eu
Sou um pássaro:

Quem disse que
O crime não compensa
Certamente nunca roubou
Um beijo.

20.02.2013

I

Tenho em mente
Uma sensível e lúcida
Razão quando penso
Em não pensar como
Pensam os outros:
Tudo o que somos
É imitação, por isso
Me alegra tanto a originalidade.

Quero que se exploda
O gosto ou desgosto
Alheio - cuidar do meu
Próprio pensamento
Já é propósito demais,
Complicação demais,
E eu gosto é do sossego:

Tudo em mim
que conseguir
Independência,
Independente
Será.


II

Não quero ser
Um bom poeta:
Bons poetas
Já existem
Aos montes.
Talvez até mesmo
Todo o poeta plausível
Seja um bom poeta
- Mas não!

Eu quero
Muito ser,
E portanto sou,
O eu poeta,
O eu tudo,
O eu mesmo:
Se sou insignificante
Ante o universo,
Ao menos sei que sou
Originalmente
Insignificante.


III

Essa coisa
De pequeneza
Ou grandeza

É uma armadilha
Sutil
Da mente.

sexta-feira, março 1

Três pensamentos influenciados por um vinho barato

I

O mormaço
Do meio
De fevereiro,
E eu, improdutivo,
Rendo meu ser
E minha consciência
A um vinho seco
Que me aquece
Mais do que preciso
E destoa este verão:

O que pensar
Diante de um tédio
Tão enorme? Observo
Com olhos prontos a tormenta
Que se arma na noite quente,
O vento que varre a dor do mundo:
O que, além da beleza,
Justifica a minha existência?


II

Tudo o que se passa,
Inumerável, é informação
Processada no grande cérebro
Da realidade - ai! qualquer
Fração disso tudo é demais
Para minha consciência,
Qualquer vírgula divina
É um ponto aos meus olhos
Leigos de mortal.

Quem me dera, ai, quem
Me dera saber tudo por
Decreto, meu unir novamente
Ao uno primordial; ai, eu quero
Retornar a deus, mas sem morrer!

Ai, estar vivo me amargura; ai,
Ser e estar é um desgosto
Sôfrego... ai... já agonizo agora
A agonia de amanhã, pois que viver
Me aborrece, mas a morte me assusta:

Me exilem
Bem longe
De tudo isso...


III

Se faz jus ao nome
O vinho que bebo,
Se presta honras
Ao Dionísio enorme
Que me habita e me
Consola, se me mata
A sede e me deixa com sono,
Se me lembra da melancolia
E da tragédia, se me lembra
Em cada gole largo um beijo
Voluptuoso de quem eu mais
Amei: qual motivo para não
Beber haveria?

Aceno ao todo que me cerca
Com meus olhos que cruzaram
A bruma - e foi o vinho
Quem guiou a barca rota
Pelo lago solitário e sem
Sinalização amiga:

Nas veias do meu instinto
Circula a embriaguez.